Apesar de muitos insistirem no contrário, jogos nem sempre são sobre diversão ou desafio mecânico. Com a evolução tecnológica e amadurecimento da indústria, muitos deles também passaram a incorporar a narrativa como um ponto central da obra, mas não da maneira com a qual estamos acostumados ao assistir um filme ou série, e sim de modo em que a nossa interação seja parte importante dessa narrativa, permitindo um aprofundamento que não é possível em outras mídias.
Quando eu comecei a aventura de Senua em Hellblade, mesmo já tendo ouvido a exaustão sobre o jogo em sua época de lançamento (2017), nada ali parecia muito diferente do que eu estou acostumado em jogos. Claro, a mulher celta que ouve vozes, carrega a cabeça de seu amado e está indo ao mundo dos mortos nórdico para ressuscitá-lo é algo no mínimo intrigante, mas até aí não há nada de muito diferente de diversas outras narrativas existentes.
Não me entendam mal, a história de Senua por si só já é algo precioso entre as histórias de jogos. Não é apenas mais uma releitura de mitos antigos, já incansavelmente explorada em diversas outras obras. Não, Hellblade é um jogo que fala sobre transtornos mentais, traumas, o enfrentamento de demônios internos e aceitação. É uma trama triste, pesada e perturbadora, que diz muito mais a respeito do passado da protagonista e o que a levou até aquele momento do que sobre o seu presente. Mas isso é algo que não cabe neste texto e cada um deve ver por si só, então falemos sobre outro aspecto do jogo.
Como eu disse antes, Senua é uma jovem guerreira adentrando em um território mítico e hostil, em busca da ressurreição de seu amado, acompanhada por diversas vozes incessantes que ecoam dentro de sua cabeça. Essas vozes vão narrar as histórias da própria Senua, assim como contar sobre as lendas daquele território antigo. Também serão as suas guias, indicando onde você deve ir, se um inimigo está prestes a lhe atacar ou se você vai morrer em batalha. Veja, isso é tanto uma característica da personagem quanto uma mecânica do jogo, já que não existe nenhum elemento de interface, nenhuma barra de vida, nenhum indicador de caminho ou objeto que brilha no cenário. Tudo o que você tem como guia são as vozes.
Hellblade não é um jogo particularmente longo ou difícil, na verdade ele é bem simples. Mecanicamente tudo o que você fará é andar, explorar os cenários resolvendo alguns quebra-cabeças e eventualmente entrar em batalhas até bem feitas, mas que se assemelham mais a uma dança onde você tem que dar os passos certos nos momentos certos do que em uma luta frenética de hack ’n’ slash. Tudo bem que existe uma certa pressão por conta de um elemento da história, que indica que se Senua, e consequentemente o jogador, forem derrotados muitas vezes, todo o progresso do jogo será perdido, mas como eu disse, não é algo particularmente desafiador. Em alguns momentos ele se torna até um pouco repetitivo, mas felizmente não por longos períodos.
Esses elementos separados talvez não sejam tão atraentes, pode parecer mais um jogo de mecânicas simples querendo contar uma boa história. Mas é aí que entra a característica única dos videogames, a de conseguir fazer com que a interação do jogador seja parte da narrativa, aumentando a imersão na história. Como eu disse antes, as vozes que Senua ouve o tempo todo também servem como indicadores para ela, mas nem sempre elas parecem estar do lado da personagem. Elas são confusas, incessantes e em diversos momentos darão conselhos opostos, como dizer para você seguir em frente ao mesmo tempo em que alertam sobre uma possível armadilha, ou questionando suas habilidades em batalha, ou até mesmo se você irá sobreviver após um duro golpe. Algumas delas inclusive parecem ter como única função a de atormentar a personagem. E é impossível que eventualmente você como jogador não se sinta aflito sobre elas serem mesmo confiáveis ou não. No fundo você sabe que aquilo é um jogo, que tudo é muito mais simples e fácil do que parece, mas o desespero da personagem diante da situação é tão palpável que você também é levado por esses sentimentos.
Não é um jogo feito para relaxar, na verdade eu eventualmente tive que fazer algumas pausas por me sentir meio sobrecarregado com aquilo tudo, até pela familiaridade com alguns sentimentos ali expostos por conta de experiências pessoais. Senua está em um ambiente constantemente opressor, onde não é o risco de uma mecânica de jogo na figura de um inimigo que gera o suspense, mas sim a de suas próprias lembranças aliadas a escuridão que a espreita naquele cenário mítico.
As provações pelas quais você passa são repletas de simbolismos, indo além de um simples paralelo com a mitologia ali apresentada, abrangendo a própria história de Senua e seus transtornos. Não somente a questão das vozes é explorada, mas a forma como a história é contada, os desafios mecânicos impostos ao jogador, a (maravilhosa) trilha sonora, todos eles convergem em como Senua se sente, sobre o que ela está passando e sobre qual a sua perspectiva do mundo.
Ao final, enfrentando os últimos adversários, Senua não é incrivelmente mais hábil do que no começo, ainda que ela seja uma grande guerreira. Mecanicamente quase não há alterações ou melhorias na jogabilidade, mas mesmo esse pouco tem muito mais relação com a evolução da personagem do que com qualquer forma de power-up. Ao compreender e encarar os seus medos, ela consegue a força e confiança para enfrentar os seus adversários e, quando tudo acabar, você a terá acompanhado e feito parte dessa jornada.
Hellblade é ótimo representante de como a interação entre jogador e jogo pode nos proporcionar uma profundidade de narrativa única dos videogames. Ele nos faz sentir todo o peso dos traumas da protagonista não somente pela sua história, mas também pela sua ambientação, trilha sonora e mecânicas, abordando saúde mental de uma maneira realista, ainda que em um universo fantástico. Avaliado noXbox One (entenda o nosso sistema de notas)
Tá. Tou convencida a reiniciar e dar outra chance ao jogo, haha! Vou prestar mais atenção às vozes. Confesso que fiquei meio de saco cheio disso da primeira vez, mas talvez eu não estivesse no mood de jogar algo do tipo e não dei a devida atenção.
Cara, gostei muito do seu relato, pois eu meio que abandonei o jogo exatamente por me sentir muito incomodado (além de perdido). É um jogo que preciso dar outra chance e jogá-lo com calma ao invés de tentar terminá-lo o mais rápido possível, como costumamos fazer com jogos mais simples.
Nossa, apesar de ser possível jogá-lo correndo e terminar bem rápido, definitivamente não é como você vai conseguir absorver a atmosfera do jogo. Como eu disse para a Angela logo acima, às vezes é melhor esperar ficar no clima para encará-lo com mais facilidade.
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